meu amor, hoje te escrevo com um aperto no peito, pois não trago notícias boas: sofro de uma cegueira branca. ainda não sei bem do que se trata, acho que cheguei cedo demais. só sei que sofro com este mal e por isso não consigo parar.

eu não consigo parar!

trabalhar trabalhar trabalhar trabalhar fumar fumar fuder fuder fuder trabalhar trabalhar trabalhar trabalhar trabalhar trabalhar fuder trabalhar trabalhar trabalhar fuder correr correr correr comprar trabalhar comprar comprar trabalhar comprar comprar comprar usar comprar comprar trabalhar trabalhar trabalhar fuder e comer. quem pode comer, come e quem não pode?

E sabe a solução que me dão? "seja você mesma" ah, vão se fuder!

fico me perguntando: será que é aquela cegueira da qual falou saramago?
bell hooks chamaria este mal estar de hetero-patriarcado supremacista branco. byung chul-han talvez me diagnosticasse como uma peça da sociedade da transparência.

bordar me ajuda a parar, bordo como quem medita.

bordar me ensina a ouvir o silêncio, a me ouvir, a ouvir o mundo.
sentada, sozinha, em algum canto da casa, sem televisão, sem música, sem podcast, eu bordo. Às vezes, me perco em pensamentos, furo meu dedo, a linha se embola e parte, o papel se rasga.
Respiro. Me volto à agulha, à linha, ao tecido, às vezes, ao papel. Tenho inventado bordados intermináveis só para continuar o exercício.

Enquanto bordo digo à mim mesma:
eu não vou parar de criar,
eu não vou parar de falar,
eu não vou parar de escutar,
mas eu vou parar!

com este exercício interminável poderiam me chamar de Penélope, mas eu não espero por Ulisses, nem por qualquer outro homem. Eu só quero amar.
a cada dia parece que corro mais, parece que os sintomas se intensificam. consumo para não parar, não paro para não sentir, consumo para não sentir, não sinto para consumir.

você deve está se perguntando como pode me ajudar? bem, eu não sei...só te peço que me olhe, que se olhe, que nos olhe. nos olhe pelo avesso. Dobre, desdobre, veja, reveja, sinta. Leia até o que eu não pude te escrever, escute o que nunca te disse, veja o que não pode ser visto.

Por aqui, eu continuarei sem conseguir parar, mas sem nunca desistir de te amar.
Socorro!
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